Sunday, September 2, 2007

Morrer-a-Sério

Vais ver como o mundo se vai bater por ti. No dia em que esperares o comboio, à chuva e de caderno na mão, escrevinhando de todas as formas que podes. Combatendo a tinta que te escorre pelos braços abaixo. Vais ver-te parado, de olhos vidrados nas letras e nos sons, apaixonado pelo tempo e as histórias.
Na estação encontrar-te-ás sozinho, no mundo te verás perdido, pelo ritmo te saberás louco. Nunca ninguém te baterá. Nenhuma das cores que o Homem fez te parecerá estranha, não terás medo da dor, muito menos das dores. Saberás da música. Saberás aliás todas as músicas, de cor, sem pudor e sem vergonha.
Olharás o caderno e verás o primeiro amor, o primeiro beijo, a primeira mão-que-treme, o primeiro carro, a primeira chuva ao volante, o primeiro mergulho no mar, o primeiro Verão. A primeira noção do outro como maior que tu, a primeiro noção de ti como maior que todos. O primeiro desejo. O primeiro suor de prazer, a primeira loucura, a primeira droga, o primeiro estrago. A primeira obsessão e a primeira classe. O primeiro emprego e a primeira desistência. E depois a primeira gargalhada, face à pequenez tua e à grandeza do mundo. Depois ainda, de forma circular, a pequenez do mundo face à grandeza do Homem. A primeira ferida e a primeira crosta que se arranca – ah, criança idiota, que antecipa o sofrimento! -, a primeira escuridão e a primeira vez que te fizeste forte. A primeira experiência de fé, na Cruz, no Homem, em Jacob ou Abraão. Nos cágados ou nos heróis.
A chuva continuará a cair, a tinta escorrer-te-á até aos pés, entranhar-se-á nos teus dedos e unhas, sentirás amor e dor, paixão e loucura. Nos altifalantes da estação tocará a tua música preferida de todos os dias, a selecção eterna. Uma voz rouca e metálica, estranhamente calorosa, anunciará a estação seguinte. Para ti será tão claro como o nome pelo qual sempre te chamaram. Afinal, tudo tão óbvio e sensato, sereno como os fins de tarde junto ao mar.
E tu, na próxima e última estação, escreverás a final palavra do caderno. Pela mão de uma força de bonança.
Verás como o mundo chora por ti, e sorrirás em paz. Porque saberás que dali a pouco tempo, sem mais dor ou mais descrença, todos se juntarão aí, nesse lugar onde as lágrimas se perdem. Onde cada homem é um homem, onde todos os homens são a mesma massa. A massa eterna.

1 comment:

Anonymous said...

muito bom