Wednesday, May 9, 2007

do Amor à Pátria II

Que ninguém me tire o cheiro a mar. Na manhã seguinte ainda preso ao corpo, as costas cheias de sal depois de um dia anterior passado na praia. Que ninguém me roube as ruas de Lisboa, cheias de velhos às janelas e putos nos largos, poetas nas varandas e empresários nas avenidas. Que não me deixem esquecer os graffitis e stencils espalhados pelo Chiado, nos cantos do Bairro Alto e no chão do Adamastor. Que eu saiba sempre onde fica o Adamastor, como o Miradouro da Graça e as Imperiais que desses lados escorregam. Que eu não me esqueça da luz de Lisboa, um cor de laranja meio africano a reflectir nas paredes de todas as cores e texturas. Que eu saiba sempre o caminho para o Alentejo, sempre junto à costa, que eu saiba descer até à ponta de Sagres, onde o vento é mais que muito e as rochas mais selvagens que os monstros. Que eu saiba subir até Braga, passando pelo Porto ou Guimarães, saiba do cheiro a Norte de Portugal e dos sotaques enrolados dessas terras mais altas. Que ninguém me leve a visão, porque assim deixaria de poder olhar os desenhos do Jorge Queiroz ou as fotografias da Helena Almeida. Que ninguém me roube a voz, porque dessa maneira não poderia mais gritar GOOOLLLOO, porque o futebol não é fetiche lusitano, é sim arte aselvajada. Uma mistura perfeita entre os pés de uns e as mãos dos outros, os que chutam na bola e os que pegam nos tremoços. Que ninguém me arranque o bitoque. Os 5€ que ele nos leva, o óleo que nos escorre pelo queixo. Que ninguém me tire o Maxime, a ZDB, o Hot Clube. A Culturgest e Serralves. Que ninguém me leve o CCB. Que nunca me cortem as orelhas, que eu possa sempre escolher ouvir o José Cid, a Amália, os Vicious Five ou o Rui Veloso. Com o Trolha da Areosa. Que niguém me corte as papilas gustativas e eu possa sempre saber o sabor de um leite Ucal com chocolate. Que eu saiba sempre do calor estúpido de Beja no Verão, do frio anormal de Vila Real no Inverno. Que nunca vire daltónica e possa sempre olhar a cor da ponte 25 de Abril como se fosse a primeira vez. Que eu saiba ser pelintra e andar de Metro sem bilhete, que tenha cuspo suficiente para conversar com
um motorista de um Táxi, que saiba regatear o preço da fruta na mercearia, com muita coragem, que eu admire os que trabalham para manter um negócio de pé. Que eu nunca perca o sentido de humor e saiba ver um país inteiro concentrado num curso superior de um homem, que acidentalmente ou não é o ministro primeiro, ou até veja presidentes de câmaras a cair das cadeiras constantemente.
Mas, acima de tudo, que eu não perca nunca a capacidade da leitura, para que possa comover-me sempre, como se cada vez a primeira, com Alexandre O’Neill a escrever assim:

Um Adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

5 comments:

Makuu said...

Ah. E os 21ºC que se fazem sentir às 2:44 da manhã, aqui, junto ao mar. Se isto não é um ponto a favor, então não sei mais o que pode ser...

Berliner said...

Passado o calor da revolta, a minha questão já é só se será assim tão dificil juntar isto com o minimo de profissionalissmo? É pedir demais?

Makuu said...

Não é pedir demais mas é quase como pedir a um russo que dance o samba. Para poder amar-se mais o povo português tem que assumir-se o que ele verdadeiramente é - Preguiçoso, acomodado e queixoso. São poucos os que querem trabalhar e fazer diferença. Assim, resta-nos ser esses mesmos, sair daqui para fora e assimilar conhecimento e profissionalismo. E depois, se se perceber no fim que continua sem haver terra mais bonita que Portugal, voltar para casa com uma cabeça cheia de coisas novas para inserir neste quase third world country.

PS este comment foi um bocado irritante. uma beca armado ao pingareiro. Makuu, Makuu... vê lá vê...

Berliner said...

eu já cá tou... faltas tu!

SL said...

Tenho para mim que ir lá fora encher a cabeça de coisas novas e voltar não é a solução que fará de Portugal ser melhor...nem tão pouco assumir que somos preguiçosos, queixosos e outros osos ou ados...passa provavelmente por não desistirmos de dar o nosso melhor todos os dias, de aprendermos com as irritações e acreditarmos que cada 1 de nós pode fazer a diferença.

Hoje pelo menos acredito e faço assim

P.s(estupidez ter 1 ps num comment):
Makuu - Adorei o post;
Berliner - tenho muito orgulho no que fazes aí!